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Fonte: google imagem |
FICHA: Uma série em cinco capítulos -
Classificação: Romance e Aventura - TEMA: Homoafetividade
Cap. 1: Sozinha
Todo dia era aquela mesma rotina maçante. Acordava às seis horas. Preparava o lanche para os irmãos. Acordava um, mandava para o banho. Acordava o outro. A mesma coisa. Depois que os dois estavam no colégio - uma escola pública da periferia da cidade, com todos os problemas que uma escola desse tipo tem – era hora de dar duro.
O serviço de moto táxi não era o mais apropriado para uma garota de dezoito anos, mas fora a única coisa que conseguira. Desde que perdera o pai e a mãe em um acidente de trânsito. Rebeca precisou assumir as funções de pai e mãe de seus irmãos caçulas, os gêmeos Paulo e Saulo, de apenas sete anos.
O pai só lhe deixou dívidas. As únicas coisas que ficaram foram a casa onde moravam, que apesar de pequena, era bem confortável, e uma moto, CG de 150 cilindradas. O automóvel da família fora totalmente destruído. Deu perda total. Até que apareceram uns tios com propostas de levá-la para morar em outra cidade. Os gêmeos ficariam um com a velha avó e outro com uma tia.
- Vamos, minha filha, vai ser bom para você espairecer. Sua prima tem tua idade, vocês vão ser amigas.
Rebeca avaliou bem a situação. Não conhecia direito o tio, nem confiava em seus olhares atravessados e demorados em direção dela. A prima da qual ele falava parecia uma esnobe. Estava no grupo da família, mas nunca escrevera uma única palavra. Nem mesmo quando todos os primos espalhados por vários estados lhe fizeram elogios. Além disso, não lhe agradava a ideia de ver seus irmãos separados. Seria outro sofrimento para eles. Por isso, enquanto os tios decidiam por seu destino e pelo valor do imóvel e da moto, já quase fechando negócio entre si, ela anunciou sua decisão:
- Nem eu, nem meus irmãos sairemos daqui. Ninguém vai nos tirar da nossa casa. Eu cuidarei deles.
A velha avó, talvez a mais bem intencionada da história, quase teve um infarto.
- Minha filha, isso é loucura! Onde é que já se viu! Uma moça morar sozinha com dois irmãos pequenos! Como é que vocês vão sobreviver?
Rebeca sentou-se ao lado da velha e pôs-se a acalmá-la. Disse que ficaria tudo bem. Ia dar um jeito. Arrumar um emprego. Não precisava se preocupar. A velha se propôs a morar com ela. Ao que Rebeca agradeceu, pois isso significaria a presença de uma das tias com a qual nunca se dera bem. A mulher vivia enfurnada numa igreja achando o demônio em tudo e em todos.
- Não vovô, eu agradeço; mas realmente não precisa.
Os tios ainda insistiram em vão. Até que saíram aborrecidos.
- Igualzinho a mãe! Oh raça ruim que nosso irmão arranjou para formar uma família. Vai ver, essa ai, nem filha dele é. Minha parte eu fiz, quis ajudar, não aceitou, paciência! Saiu ponderando o tio que intentava levá-la para as bandas de Xinguara.
Depois de dois meses da morte dos pais, sem conseguir um emprego, o jeito foi pegar a moto e rondar pelas ruas da cidade quando os meninos estavam na escola, em busca de uma corrida. Negociou a vaga com um amigo do falecido pai que se desfazia do ponto para ir morar em outra cidade onde arranjara um emprego na sua profissão de mecânico. As pessoas estranharam num primeiro momento. Não era comum aquilo. Alguns não confiavam em ver uma garota magrela e alta pilotando uma moto táxi. Por isso encontrou muita resistência.
Ela precisou trancar a faculdade até as coisas se ajeitarem. Distribuiu contato pelo campus. Fez propaganda de seus serviços e aos poucos ia ganhando uma clientela entre os alunos que ligavam com horários certos. Além desses, havia duas crianças que levava e buscava na escola. Tudo acertado por um valor fixo por mês. O final do ano chegava e o pouco dinheiro que ganhava nas corridas, mal dava para pagar as despesas da casa. Aquele seria o primeiro final de ano que passariam sem seus pais. O único conforto que ela tinha era em saber que aquela situação estava sendo melhor do que ter abandonado seus irmãos e terem ido um para cada canto.
Já não via nenhuma perspectiva de mudar aquela situação. Não possuía uma formação. Não sabia fazer muita coisa. Pelo menos havia tirado a carteira no começo daquele ano, logo que fizera dezoito anos. Isso estava sendo sua salvação.
É verdade que nos contos de fadas muitas coisas podem acontecer em poucos tempos. Situações mágicas que mudam as vidas das pessoas. De repente, um mendigo torna-se possuidor de muitas riquezas. Pessoas desprovidas de qualquer beleza física, por encantamento, tornam-se belas e atraentes. Porém, aquilo ali era a vida real. Rebeca sabia que cada centavo era ganho arriscando sua vida no trânsito, pilotando uma moto. Todos os sinais de vaidade da garota de um ano atrás desaparecera. Há muito tempo que não ia a um salão arrumar os cabelos, pintar as unhas. Essas pequenas coisas que envaidecem as mulheres. Não andava feia, desarrumada; mas a profissão a obrigou a adotar um estilo mais rude. Passava o dia com uma calça Jens surrada, uma blusa de mangas longas, um colete e luvas. Do dinheiro que conseguia ainda precisava tirar o valor para pagar Marcela, a filha da vizinha que cuidava dos irmãos até as dez, inclusive ajudando nas tarefas da escola. Quando Rebeca chegava, ela passava o relatório das peripécias dos garotos enquanto ela se desfazia daquelas roupas suadas. Às vezes, por gentileza, a garota, punha a janta para esquentar, enquanto Rebeca tomava um banho e vinha enrolada numa toalha com cabelos molhados devorar a comida.
- Você não precisa fazer isso, Marcela, já está tarde, pode ir embora, protestava ela sempre.
Ao que a menina respondia que fazia aquilo porque sabia que ela chegava morta de cansada, além disso morava a duas casas dali. Depois que terminava os relatos sobre o dia, Rebeca ia até a porta esperar que Marcela entrasse na sua casa.
Aquela vida dura foi-lhe moldando as feições. O corpo foi ganhando musculatura e o corpo da garota magrela e sem jeito, logo tornou-se uma mulher de corpo atraente. As cantadas vinham aos montes. Tanto dos colegas de profissão quanto dos fregueses que passaram a preferir andar na garupa dequela piloto ao invés de andar atrás de outro homem suado.
No entanto, Rebeca não tivera tempo de conhecer o amor. As sensações de seu corpo eram abafadas na hora do banho. Ou quando acordava à noite se queimando de desejos. Naquela cama de casal, ao lado de seus irmãos. Nessas horas, levantava-se. Sentava no sofá na sala. Buscava entre os contatos de seu telefone alguém que pudesse lhe interessar. Quem sabe um paquera. Alguém com quem dividir um pouco sua angústia. Ninguém que valesse a pena. Os homens que a olhava na rua, pareciam feras famintas. Vivia apavorada. Com medo que a casa pudesse ser invadida por um daqueles homens. Muitos sabiam de situação de órfã de pai e mãe.
Contos de fadas já não existem mais. São histórias de outras épocas. Mas o amor ainda pode existir. E, muitas vezes, vem de onde menos se espera. Foi assim que esse sentimento confuso e inesperado entrou na vida de Rebeca.
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CAPÍTULO 2 - O ENCONTRO